Descobri que a negligência é um hábito que a gente cultiva, de maneira geral. A gente fica achando que nada vai dar errado, que “não tem problema” e, descuidados, deixamos passar a pequena infiltração
O primeiro carro que eu comprei foi o “amor da minha vida”. Eu sentia tanto orgulho de conseguir realizar um sonho, que toda as vezes que eu caminhava na direção dele, eu pensava: Parabéns pela coragem, Vanessa. Na época comprei a placa com os números do dia do meu aniversário: 2703, e a partir disso percebi que muitas placas eram parecidas com as minhas e comecei a fotografá-las. Servia 0327, 3027, 0273, e eu aceitava 5327 também, contanto que tivesse 27 e 3, estava valendo. Era como encontrar figurinhas premiadas raras e brilhantes do álbum de figurinhas. Uma brincadeira “divertida” com meu destino no trânsito.
Em 2013 eu estava dirigindo e parei meu carro no semáforo da Av. Rio Branco, de Florianópolis. O carro da frente tinha a placa 2730, e logo eu o quis fotografar – para a minha “coleção”. Peguei o celular, enquadrei a placa e pronto. O sinal abriu, virei a curva, o celular escapou da mão, olhei pra pegar e bati o carro, no 2730 da frente.
Desci do carro, culpadíssima. A motorista do carro da frente desceu, pegou o celular, ligou para alguém, falou-falou-falou, nervosa veio na minha direção perguntando se eu tinha seguro, falando que eu era uma irresponsável porque eu estava tirando selfies dentro do carro. Disse ainda que o carro era novo e que fazia menos de uma semana que ela o estava dirigindo. Ah, não…
Aprendi que deixar falar é bem importante — por quanto tempo o outro precisar, que não se discute enquanto o aquecido das emoções está no domínio — e que, certamente, eu jamais queria uma inimiga ou, com certeza, ter feito mal para a vida dela ou piorar a situação. Então eu tinha que ter humildade para entender a revolta, que procedia de razões que eu podia compreender. Bati no sonho dela, na primeira semana. A culpa foi 100% minha.
Quando o fervor do desabafo passou eu disse que sentia muito e profundamente, que podia entender e que se fosse comigo eu estaria muito chateada. Falei, em tom envergonhado, que precisava confessar que meu erro partia de uma paixão que eu mantinha sobre os números das placas, que até então era como uma diversão. Apontei meu carro e disse: a minha placa é referência ao dia do meu aniversário, e toda vez que encontro uma placa com os mesmos números eu fotografo, como um sinal de uma sorte para o meu dia — e mostrei a foto da placa do carro dela. Confirmei que tinha seguro e que me colocaria a total disposição para descobrir meios de reduzir o desconforto da situação que eu tinha causado.
Tão logo fomos para a delegacia, fizemos o B.O. e tivemos conversa bem agradável. Sinto que o fato de ela perceber que eu assumia a culpa também ajudou a acalmar tudo. Ela é arquiteta — e eu admiro demais essa profissão — ficamos trocando outros tipos de figurinha, enquanto a Fátima Caponi — do meu seguro — resolvia rapidamente a burocracia e eu procurava me redimir do meu erro, demonstrando o meu real arrependimento e aprendizado. Eu posso bater as fotos, colecionar, achar sensacional, contanto que isso jamais represente um risco ao bem e a vida do outro. É o mínimo! Mas como isso não era óbvio?!
Descobri que a negligência é um hábito que a gente cultiva, de maneira geral. A gente fica achando que nada vai dar errado, que “não tem problema” e, descuidados, deixamos passar a pequena infiltração, o cheque especial e os seus juros, o colesterol alto e o relacionamento violento, o sexo sem camisinha, como se uma pequena rachadura não fosse um sinal de rompimento de barragem.
Tragédias em que nos sentimos totalmente impotentes e distantes de uma ajuda real, nos caberá uma análise de semelhança. Em que momentos me pareço, em minha rotina, com a negligência que permite a batida do carro? Quando é que dirijo com celular na mão, quando não escuto minha intuição ou quando postergo o conserto do choque que a minha geladeira sempre dá? Quando não levo meu lixo da praia? Ou fumo ao lado de uma grávida? — esse último é meu desabafo pessoal.
Também nos cabe a reflexão sobre as confissões que postergamos porque temos medo de nossas próprias sombras. A gente mente, trai, sente inveja, tem autopiedade e se vitimiza — tentamos enganar a nós mesmos sobre o que acreditamos ser correto e abrimos mão de nossos valores para manter relacionamentos que, no futuro, romperão com nossas barragens. A gente sabe do que estamos falando aqui. Se não conhecemos e trabalhamos no fortalecimento e mudança do nosso elo mais fraco, toda corrente terá essa “força-fraca”.
Se nos queremos bem, e amamos ao próximo como a nós mesmos, nos cabe a ação de dentro para fora, do micro para o macro, da expansão da consciência, por sua revisão íntima e particular até a criação do autogoverno, que age individualmente respeitando a si, e portanto, ao todo.